Dos livros

Publicado por Paulo Ferreira em

Nunca roubei um livro. A minha carreira de larápia principiou-se e findou-se numa nebulosa tarde de inverno quando, ao mirar de soslaio a caixeira de uma loja de decoração, me aproveitei de um instante de distracção e surripiei um laço que se encontrava sobre o balcão. Convicta do terrível dano do meu delito, logo me encarreguei de escondê-lo na cinta da minha saia escocesa. Nunca fui boa ladra. Os tremores e o rubor facial rapidamente me denunciaram. O laço que sem ser exactamente vermelho também não o era exactamente rosa, não se me destinava. Nunca eu teria cabeleira para tal, sabia-o. Antes, para uma amiga.

Uma mulher aproximando-se cautelosamente dos meus dez anos de idade perguntou-me: – o que escondeste ai? Imaginando-me já encarcerada levantei a camisola e retirei a fita, de olhos baixos, fixos nas minhas botas, esperando o veredicto. De laço na mão a mulher de negros cabelos e ar de severo Juiz, riu-se: – mas isto é fita de embrulho, respondeu, devolvendo-me o objecto da minha malvadez. Entre sentir-me desfraldada no meu primeiro roubo e a vergonha, deixei a fita para trás, virei costas e, recordando-me de minha mãe, endireitei-me. Afinal não era má rés. Só uma má larápia no sentido mais cómico da situação. Desnecessário será dizer que nunca mais falei com a rapariga a quem se destinava a fita. Isto por me ter inspirado, involuntariamente e sem qualquer conhecimento sobre tal, o meu maléfico acto.

Fazendo jus a verdade devo igualmente revelar que, um dia, em situação adversa, procurei fanar uma fotografia que tinha quatro centímetros de cumprimento por dois de altura. Era a minha bisavó com a minha mãe ao colo. Mais uma vez, achando que embora dali se retirasse importante valor sentimental, o mesmo não me bastaria para a espécie de remorsos de que padeço desde a infância. Uns sem razão. Como uma espécie de autoconsciência policial que por vezes me assalta e me faz pesar a nuca na almofada. Muita gente que conheci atribui o meu exacerbadíssimo complexo de culpa à minha católica educação, renomeando-o sob a pomposa designação de complexo de Messias. Ora, embora as minhas precoces confissões a um padre cego me tenham perturbado vagamente, sempre imaginei que Deus, a existir, é míope e, necessariamente, velho, muito velho. Cá por casa deus sempre foi uma vaga ideia de ausência colmatada pelos pedidos aos mortos da família.

Pela mais simples e prosaica razão que minha mãezinha me ensinou: – é que eles têm o nosso sangue; de facto, até onde a minha peregrinação genealógica me levou não anoto qualquer santo ou santa. A única, com nome para tal, não creio que tenha tido algo que se pudesse atribuir à santidade: chamava-se Maria Magdalena de Pazzi Soares e morreu há cerca de cento e sessenta anos. Os seus ossinhos – que tive a oportunidade de admirar quando se abriu a cripta da Igreja dos Clérigos – contam apenas o que já se sabia: foi mulher grande. E quando digo grande, refiro-me a mais linear análise anatómica; morrendo muito velha e tendo-se feito irmã secular da Irmandade em oitocentos e quarenta e dois, à data da morte, não conseguiram encaixá-la nas sepulturas da capela da Lapa – que, diga-se de passagem: deviam, ao seu irmão e meu sétimo avô, a sua existência – devido ao exacerbado volume do seu caixão que assim teve de ser deixado na cripta, na companhia do bispo de Aveiro que já lá estava a uns longos tempos. Agraciada com tal distinção, imagino que tenha tido uma vida interessante, e não santa, já que se dedicara aos negócios do vinho, de resto, à semelhança do resto da família. Ora, embora com santo nome, raramente a ela se recorre em momentos de dificuldade, tendo, há muito, sido destituída em favor de mortos mais recentes e por isso, ainda, mais próximos. Também não creio que alguma vez tenha roubado o que fosse.

Sem historial de maior criminalidade seria de esperar que, ao menos, fazendo justiça aos meus hábitos de leitura e a minha cronicamente esguia bolsa, tivesse já rapinado alguma obra ao longo da minha parca existência. Não por falta de oportunidade, porém, uma vez mais, em nome da verdade: é que nunca se me assaltou semelhante pensamento, em larga medida, por uma trágica falta de vontade. Conheci sim, o rigor – até à morte – dos bibliotecários e recordo-me, em tempos universitários, de pagar corpulentas dívidas devido a fatal transgressão dos prazos. Mas os livros que eu lia não eram dos mais afamados. Confesso que alimentei, desde nova, um certo desdém a tudo aquilo que inclui filas de espera.

Os livros que possuo chegaram às minhas mãos, por norma, ou através de ordem dinástica e hereditária; em celebração de aniversários ou natal; ou, ainda, por que algumas almas caridosas mos emprestaram, mesmo quando as aviso que me devem repreender e exigi-los de volta. Coisa que raramente fazem. Esta última circunstância coloca-me no papel de gatuna involuntária, porém, também me parece que, a ser isso crime, só o pode ser considerado em toda a sua dimensão se houvesse da minha parte a recusa em os devolver, o que não acontece. Eu quero devolvê-los mas ninguém mos pede. E quando pedem, abro as portas de minha casa, e digo: – faça o favor de procurar.

É que os livros, principalmente neste sótão de irregulares alturas, encontram-se distribuídos em incompreensíveis ilhas que vão formando pela sala, em meia-lua, uma espécie de arquipélago que, por sua vez, rege a forma como me movimento intimamente. Não há ordem. Aqui nunca houve ordem. Há estantes com fartura mas que raramente comportam a sua missão inicial. É que os móveis, como os livros, são coisas excessivamente vivas que vão revelando as suas múltiplas utilidades.

Sempre quis ter um sofá. Evidentemente que, no meu imaginário, só dois ou três tipos seriam possíveis: os à inglesa – chesterfield, obscenamente caros; os orelhudos de veludo, podendo oscilar entre o verde-musgo e o vermelho-escuro; ou, por último, o fabuloso divã. Como a realidade me priva de tais dispêndios, uso estantes como quem usa paletes de madeira. Mas, regressando aos livros: quando os compro ou é por impulso ou por extrema necessidade. Comprei a Constituição Portuguesa nutrida de um profundíssimo ódio a um advogado. De igual forma comprei uma série de almanaques do século XIX pelo singular prazer olfactivo que me dão. Vários históricos para me alimentarem curiosidades e romances como paliativos à imbecilidade que naturalmente aflora, quotidianamente, em qualquer cidade portuguesa.

Há casos raros. O Doente Imaginário chegou depois da peça, e pela memória que me devolve de certas manias que vi nos adultos da minha infância. O Sonho de uma Noite de Verão, por ter sido o primeiro livro que li numa biblioteca; o Aleph, o primeiro que comprei; A incrível e triste história de Cândida Eréndira e sua avó desalmada, pelo anjo agrilhoado no galinheiro mas também pelo cheiro a rosas que vinha do fundo do mar pelos mortos que lá eram sepultados com os seus respectivos ramos; o Camilo, sempre o Camilo, por razões pessoalíssimas e que envolvem a minha tia trisavó Gertrudes.

O Hemingway, o Kerouac, o Camus, o Sartre e o Sade – estes dois de estranha associação – são herança paterna; o Garcia Márquez, mas antes, o Balzac, o Zola e a Simone, são maternos. Naturalmente, Lorca é pai e Pessoa, em Álvaro de Campos, é mãe; o que, talvez ambos gostassem. Também há o Miller e a Nin que são meus. O Miller, velho conhecido do meu pai, mas do qual não me chegou nenhum título: num impulso comprei-os todos. O Nuno Bragança, Lobo Antunes, Agustina e o Henry James são os meus vinte anos. No que respeita a russos: meus, meus, meus.

O Vila-Matas fala no leitor talentoso, na Dublinesca, talvez eu não seja uma leitora talentosa mas sou sem dúvida uma engenhosa. Tinha dezassete anos quando li Rimbaud e não morri de paixão. Baudelaire menos ainda. E Poe continuará a ser um livro negro com um belíssimo «a» na lombada numa edição da Arcádia que o meu pai comprou. Junto ao Dossier do Conflito Israelo-Árabe do Sartre coloco o Delta de Vénus e imagino o velho esbugalhado a olhar a bela Nin de perfil, enquanto ela se mantém de rosto virado para as costas da Vénus das Peles. Pego em Hemingway e junto ao Steinbeck no A Leste do Paraíso – coisa que nunca foi de meu gosto – e imagino o Papa Hemingway – como lhe chamamos cá em casa – ao fim das dez primeiras páginas a bocejar. Rio-me. E sou novamente dez anos, quase delinquentes, ao reunir na mesma ilha, poetas ou escritores vivos que sei detestarem-se.

Escrever – sempre me pareceu – algo criminoso; ler também.

 

©Beatriz Hierro Lopes


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