OS LIVROS E A CENSURA EM PORTUGAL

Publicado por Paulo Ferreira em

OS LIVROS E A CENSURA EM PORTUGAL
José Brandão

 

Não se sabe bem ao certo quanto tempo a cultura portuguesa pôde viver livre da implacável repressão dos censores e seus mandantes.

Pelo menos desde que D. João III, no ano de 1539, se lembrou de “empossar” um seu irmão mais novo, o cardeal D. Henrique, nas funções de inquisidor-geral do Tribunal do Santo Ofício, os livros, os autores, os editores e tudo o que não entrava nas boas graças da Santíssima Inquisição, jamais tiveram grande descanso e conseguiram dar asas ao seu espírito criador.

Uma das primeiras ordens do cardeal inquisidor foi pôr o prior de São Domingos e os frades da confraria a proceder a um varejo nas livrarias públicas e particulares à procura de livros proibidos ou considerados nefastos. Obras de Damião de Góis, autos de Gil Vicente, a 2ª edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões, A Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, O Diálogo do Soldado Prático, de Diogo do Couto e O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, estão entre as muitas que conheceram a beatitude dos índices expurgatórios.

Um texto de José Amaro Dionísio, Escritores na Prisão, publicado na revista «Grande Reportagem», de Julho de 1993, conta que de Camões a Camilo, do padre António Vieira a António José da Silva, de Francisco Manuel de Melo ou a marquesa de Alorna a Gomes Leal, de Bocage a Cesariny, é ininterrupto o rol dos poetas, novelistas ou ensaístas que pagaram a factura da sua diferença. Porque foi regra geral esse o crime: ter um rosto e voz próprios. Carrascos, sempre os mesmos: o poder e o dinheiro, a maioria e a manha.

Damião de Góis, cronista de reis e príncipes, esteve preso quatro anos. Quando já era septuagenário acabou por sair sob liberdade condicional para morrer nesse mesmo ano de 1574. Causa da prisão: ser autor da Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, publicada em quatro volumes, e na qual o monarca viu referências desfavoráveis à sua pessoa e à política do reino, nomeadamente a condenação da matança dos judeus. O primeiro volume foi apreendido e nele introduzido, à revelia do autor, elogios ao cardeal D. Henrique, inquisidor-mor, e à própria Inquisição.

Luís de Camões esteve preso duas ou três vezes, a primeira cerca de nove meses entre 16 de Junho de 1552 e 13 de Março de 1553, por causa de uma simples rixa no Rossio. Sobre Os Lusíadas, que salvara de um naufrágio na costa do Camboja, teve de submeter o texto aos censores do Santo Ofício, instalados no Mosteiro de S. Domingos, e discuti-lo verso a verso. Após a sua morte, ocorrida passado pouco tempo, sobre tudo o que escreveu, incluindo Os Lusíadas, caiu o silêncio da comunidade intelectual do seu tempo, ocupada a elogiar autores que hoje ninguém sabe quem são.

Francisco Manuel de Melo, poeta, dramaturgo, historiador, cronista militar, moralista, foi dos escritores portugueses que mais tempo passou na prisão – entre nove e onze anos, só de uma vez. Os motivos ainda hoje são obscuros.

Padre António Vieira, o profeta do Quinto Império também não escapou aos cárceres da Inquisição, nos quais foi metido em 1665 e 1667 por causa da publicação do livro Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e Segunda Vidas de El-Rei D. João IV, em que defendia os cristãos-novos e sibilava contra os dominicanos do Santo Ofício.

Francisco Xavier de Oliveira, Cavaleiro de Oliveira, o Santo Ofício condenou-o no dia 18 de Agosto de 1761 mas ele estava exilado na Holanda e safou-se. Apenas a sua efígie foi queimada, exactamente no último auto-de-fé que houve em Portugal, e os seus livros foram retirados do mercado.

António José da Silva, «O Judeu», dramaturgo, foi preso pela primeira vez em 1726, juntamente com a mãe. Torturado, liberto meses depois é novamente encarcerado em 1737, de novo com a mãe e agora também com a mulher e a filha. Dois anos mais tarde foi degolado e queimado num auto-de-fé no Terreiro do Trigo em Lisboa. A mulher e a mãe foram igualmente queimadas vivas.

Correia Garção, poeta e dramaturgo foi mandado prender no dia 9 de Abril de 1771 pelo marquês de Pombal. Metido no Limoeiro, aí ficou até 24 de Março de 1773. No dia em que a ordem de soltura chegou, morreu na enfermaria da cadeia.

Filinto Elísio, poeta, sacerdote, denunciado à Inquisição pela própria mãe, já depois da queda de Pombal.

E a lista apresentada no trabalho de José Amaro Dionísio na «Grande Reportagem» parece não ter fim:

José Anastácio da Cunha, preso e desterrado para Évora, já sob o reinado de D. Maria. Tomás António Gonzaga, preso e deportado para Moçambique. Marquesa de Alorna, obrigada a reclusão monástica juntamente com a mãe, viveu nas celas do Convento de S. Domingos de Benfica desde os 7 aos 27 anos de idade, entre 1758 e 1777. Bocage, várias vezes preso, condenado pela Inquisição a ouvir os sermões dos oratorianos no hospício-prisão das Necessidades. Almeida Garrett, preso, várias vezes exilado e demitido dos seus empregos, ora soldado ora ministro, correspondente comercial ou foragido, rico e pobre, é o exemplo de escritor às voltas com a vida. Almeida Garrett chega a vender parte da roupa para arranjar dinheiro, e a deixar a mulher e os filhos em casa de parentes por não ter com que os sustentar. Esteve encarcerado no Limoeiro, nos últimos três meses de 1827, acusado de incitar com os seus escritos o movimento liberal. Camilo Castelo Branco, preso na cadeia da Relação do Porto. Data: 1860-1861. Acusação: adultério. Gomes Leal, preso em 1881 acusado de injúrias ao rei D. Luís no panfleto A Traição e o Regenerado.

Com autos-de-fé, ou sem autos-de-fé, a vida cultural portuguesa raramente deixou de permanecer controlada e bloqueada pelo zelo das censuras e outros afrontamentos à liberdade de expressão e de pensamento.

Já no seu tempo, Alexandre Herculano haveria de escrever:

Onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da Inquisição, há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossível político.

Mais nos nossos dias, Anele Reis, autora de um apontamento sobre a censura, publicado no mensário «Portugal Socialista», de Janeiro de 1983, dirá o seguinte:

A censura, numa prática constante e presente através da cultura portuguesa, como dado negativo que é, contribuiu para forjar nossa maneira de ser e de estar no mundo, modelou comportamentos, estabeleceu preconceitos que vêm preocupando historiadores da cultura...



A poucos meses do 25 de Abril de 1974, o então ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, ordenava à polícia política para “dedicar um cuidado particular ao imediato cumprimento das seguintes instruções:”

1 - Relacionar as tipografias que se dedicam à impressão de livros suspeitos – pornográficos ou subversivos;

2 - Organizar um plano de visitas regulares a essas tipografias para impedir, efectivamente, a impressão de textos susceptíveis de proibição;

(...)

5 - Organizar a visita regular às livrarias de todo o País para sequestro de livros; revistas e cartazes suspeitos e para apreensão dos que já estão proibidos pela Direcção dos Serviços de Censura;

E como se a censura não fosse suficiente, muitas vezes a Polícia assaltava as casas dos escritores, as gráficas ou os editores levando tudo o que vinha a jeito.

De uma só vez, a editora Europa-América teve 73 mil livros apreendidos e 23 títulos proibidos. A “caça” começou no dia 14 de Junho de 1965. Durante quatro dias deram volta a tudo. Regressaram no dia 23. Agora com carros que cercaram todo o edifício de Mem Martins e levaram toda aquela quantidade de livros. Em dinheiro da altura, o prejuízo andou pelo menos na ordem dos 700 contos. Para a grande maioria dos editores portugueses, nesse tempo, tal situação era a ruína completa.

Nesse mesmo ano, e na sequência da atribuição do «Prémio Camilo Castelo Branco» ao escritor angolano Luandino Vieira, a cumprir uma pena de 14 anos de prisão sob a acusação de terrorismo, a Sociedade Portuguesa de Escritores vê a sua sede, em Lisboa, feita em fanicos por obra de um bando de legionários e agentes da polícia política, acabando por vir a ser extinta por despacho do ministro da Educação Nacional.

Nos dois anos que antecedem ao 25 de Abril de 1974, as prateleiras da editora Seara Nova ficaram com menos 1500 contos de livros que a PIDE/DGS se encarregou de levar para os armazéns da Rua António Maria Cardoso. Além de ter alguns dirigentes e colaboradores detidos na prisão de Caxias (situação que era já quase normal), a Seara Nova podia contar, nessa altura, com pelo menos cinco processos por edições de livros considerados subversivos e que a DGS tinha já enviado para o Tribunal Plenário.

Vários editores viram as suas instalações destruídas e encerradas violentamente pela Polícia, como sucedeu, entre outros, com a Editorial Minotauro. Alguns tinham quase todas as suas edições proibidas de circular no mercado. Na lista que se apresenta no final deste texto, é bem visível um lote de editoras que aguçavam, com especial sabor, os apetites saqueadores da polícia política encarregue das apreensões.

Um dos últimos relatórios da actividade da Comissão de Censura, referente a Janeiro de 1974, indica quase centena e meia de títulos retirados do mercado em apenas um mês.

Segundo afirmou, em 1984, a Comissão do Livro Negro do Fascismo, foram proibidas durante o regime Salazar/Caetano cerca de 3300 obras.

Poucos foram os grandes nomes da cultura portuguesa que escaparam ao crivo da censura repressiva. Uma lista enorme de autores, onde constam alguns dos maiores vultos de sempre da nossa cultura, foi divulgada logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 pela Comissão Directiva da Associação dos Editores e Livreiros Portugueses.

Apesar da censura não se aplicar directamente aos livros, estes eram com facilidade retirados do mercado e os seus autores ou editores sujeitos a castigo. Foi o que aconteceu ao grande escritor Aquilino Ribeiro. Em 1959, com 74 anos de idade, o maior romancista português do seu tempo vê-se perante a barra do Tribunal, indiciado num processo por delito de opinião, em que a pena de prisão poderia ir até oito anos. Isto por ter publicado o romance Quando os Lobos Uivam, onde retratava uma realidade da vida camponesa, na Serra da Estrela, que desagradou ao regime de Salazar.

Para Heliodoro Caldeira, advogado de Aquilino Ribeiro nesse famoso processo e, também ele, um homem habituado nas lides do combate contra a ditadura, o caso explicava-se em meia dúzia de palavras, conforme teve oportunidade de expor aos autos de defesa do seu constituinte, onde, a dado passo, afirma o seguinte:

Através do presente processo, mais do que provar umas pretensas ofensas a tais e tais pessoas ou denunciar um ataque a certa estrutura política, o que parece procurar-se é coarctar o direito de um escritor fazer qualquer obra de ficção em que por transposição imaginativa tome posição acerca dos problemas que respeitem ao meio em que está integrado. Quer dizer, pretende-se relegar o artista à situação de simples escrevinhador de histórias, que não têm outra função senão a de divertir o bom burguês satisfeito com a vida e com o mundo. Acabar-se-á de uma vez para sempre com a liberdade de pensar, e ninguém pense mais em emitir juízos quanto à sociedade em que vive, passando todas as estruturas a ser inatacavelmente perfeitas, e nelas tudo correndo panglóssicamente pelo melhor. Seria o último estádio de um lento processo com fim de esmagar toda e qualquer manifestação de inteligência, de aniquilar o indivíduo como ser pensante e de o acorrentar bovino e passivo ao arado de que o Poder segura a rabiça.

A obra literária, tornada meio de embrutecimento e de nirvanação, iria caindo aos poucos num formalismo académico, num anedotário para bacocos, todas as formas destituídas, a preceito, de conteúdo. E adeus literatura, adeus cultura, adeus personalidade nacional!

Episódios como este, passado com Aquilino Ribeiro, davam para encher páginas e páginas contando situações vividas por outros nomes da craveira intelectual do grande mestre do romance Quando os Lobos Uivam. Alguns estão ainda vivos. E muitos são aqueles que, com maior ou menor impacto, conheceram a violência da censura no seu pensamento escrito, quando, não mesmo, a violência da brutalidade física na sua carne e na sua dignidade.

Por uma razão ou outra e por mais ou menos tempo, muitos escritores foram detidos sob a acusação de delitos políticos ou de atentado aos costumes. José Amaro Dionísio aponta algumas dessas situações:

No primeiro caso a lista vai de Maria Lamas e Rodrigues Lapa a Urbano Tavares Rodrigues – preso três vezes –, de Alves Redol, Alexandre Cabral, Orlando da Costa, Alexandre O´Neil, Alberto Ferreira e António Borges Coelho a Virgílio Martinho, António José Forte e Alfredo Margarido ou os mais novos Carlos Coutinho, Carlos Loures, Amadeu Lopes Sabino, Fátima Maldonado, Hélia Correia e Raul Malaquias Marques. Augusto Abelaira, Manuel da Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres estiveram igualmente detidos às ordens da PIDE em 1965, na sequência da atribuição do prémio da Sociedade Portuguesa de Escritores ao romance Luuanda, do angolano Luandino Vieira. Abelaira, Fonseca e Torres integravam o júri que decidiu o prémio a Luandino, preso no Tarrafal, e a SPE foi assaltada e extinta. Julgados em plenário foram ainda, por causa do livro Poesia Erótica e Satírica, Natália Correia, Ary dos Santos, Mário Cesariny, Ernesto Melo e Castro, Luiz Pacheco e o editor Fernando Ribeiro de Melo. Condenados com multas e prisão remível. Os dois últimos voltaram ao plenário para outro julgamento, o da tradução e publicação da Filosofia na Alcova, de Sade, que juntou no mesmo processo Herberto Helder e o pintor João Rodrigues. Condenados também com multas e prisão remível. Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa desceram por sua vez à barra do tribunal por causa das Novas Cartas Portuguesas. Absolvidas, já depois do 25 de Abril, embora o julgamento, evidentemente, tivesse começado antes. Nesta mistura de política e atropelos vários, Luiz Pacheco e Mário Cesariny são dois casos em destaque. Pacheco, como ele próprio recorda, esteve pela primeira vez preso em 1947 no Limoeiro, acusado de estupro. Foi condenado na Boa-Hora a pena suspensa. Voltou ao Limoeiro em 59, desta vez sob acusação de atentado ao pudor. Foi absolvido. De novo na cadeia em 68, por rapto e estupro. Desta vez foi condenado a meses de prisão efectiva, que cumpriu nas Caldas na Rainha e no Limoeiro.

Cesariny envolveu-se em 1960 em “actos imorais”. Obrigado a residência fixa, tinha de se apresentar todos os meses na Polícia Judiciária. (...) Esteve preso por menos uma outra vez, em Paris, em 1964, acusado de “ultraje público ao pudor”.

Tudo era assim neste país conforme nos conta o autor do artigo Escritores na Prisão: - a maldição que os une é a mesma: um país que em cada época e de geração em geração encomenda os seus escritores à miséria ou para o exílio, ao suicídio ou para a prisão. Para a prisão, juntamente: dos cronistas de 1500 aos autores contemporâneos sucedem-se os intelectuais que por razoes políticas, rivalidades pessoais ou inconformismo de costumes sofreram maior ou menor parte das suas vidas atrás de grades.

Tudo era assim e continuava a ser. De pouco serviam as intervenções parlamentares de deputados liberais, como Francisco Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Miller Guerra e de mais dois ou três que não poupavam o Regime, reclamando corajosamente pelos direitos e liberdades negados aos cidadãos do seu País.

O Governo era mais sensível aos editorialistas de jornais como a Erro! Não é possível abrir a origem de dados.«Época» que, em 1973, escreviam neste tom:

«Abriu há pouco a Feira do Livro de Lisboa. Entre as oitenta e tantas barracas de livreiros, quantas se destinam à propagação de livros apontados à subversão social?»

«Há forças ocultas a manobrar nos planos da inteligência desde as tribunas de crítica (que foram as primeiras posições conquistadas), até aos sectores da publicidade, que permitem comandos espantosos.»

Clara Barata e Luís Miguel Queirós são autores de um trabalho apresentado no suplemento Leituras do jornal «Público» de 11 de Junho de 1994. Chama-se Livrarias no Regime Fascista e nele alguns intervenientes recordam as suas experiências desse tempo: Reunia-se aqui muita gente contada com a oposição à ditadura – explica Fernando Fernandes, que acompanhou todo o percurso da Livraria Divulgação e passou a sócio-gerente da Livraria Leitura. Antepassada da actual Leitura, a Divulgação foi, no Porto, ao longo da década de 60, a mais importante livraria da oposição.

Conforme palavras dos autores do texto do «Público»: à sorrelfa, arranjavam-se os livros dos quais o regime não queria que se ouvisse sequer falar. Escondiam-se em vãos de estantes, paredes falsas, ou até em baldes de tinta, e só se vendiam a clientes de confiança – “por debaixo do balcão”, embrulhados em papel pardo.

A norte do Porto, raras eram, também, as cidades que não possuíssem uma ou outra livraria conotada com a oposição ao regime. A do historiador Victor Sá, em Braga – a Livraria Victor, na Rua dos Capelistas, cuja antiga sede foi sacrificada a interesses imobiliários – terá sido, porventura, a que atingiu maior notoriedade.

As pessoas sabiam que ao importar, distribuir ou editar determinadas coisas, se sujeitavam às consequências, conta José Ribeiro, da livraria, editora e distribuidora Ulmeiro, na Avenida do Uruguai, em Lisboa.

Por vezes, levavam-me preso, para a António Maria Cardoso, para prestar declarações. Faziam interrogatórios de intimidação, acusavam-me de ser um comunista disfarçado de comerciante, recorda José Ribeiro. A única hipótese era fazer como Manuel Ferreira da Costa, da Livraria Sá da Costa, de Lisboa: Eles faziam perguntas parvas e a gente respondia parvamente.

Habituávamo-nos a trabalhar em dois níveis. Interiorizávamos os códigos de vivência impostos, sabíamos o que podíamos escrever, editar ou vender. Jogávamos um jogo, reflecte Alferes Gonçalves, da Livraria Finisterra, em Coimbra. Era uma espécie de jogo do polícia e ladrão, acrescenta José Ribeiro.

Os livros proibidos eram verdadeiros “best-sellers”, tanto pelo que eram, como por serem proibidos. Muitas vezes nem eram nada de especial. Mas a proibição aguçava o apetite, afirma José Reis, gerente da Livraria Portugal, na Rua do Carmo. Quem fez grande fama dos livros proibidos da Ulmeiro foi a PIDE, comenta José Ribeiro.

O leitor interessado sabia onde encontrar o livro proibido. Em Lisboa, nas livrarias do Centro do Livro Brasileiro ou da Europa-América, na Moraes, ou na Ulmeiro. Na velha Barata, com o malogrado António Barata, ou o Afonso que por lá continua. Na Boa Leitura, junto ao Areeiro, onde um dos irmãos Branco tinha sempre o que era preciso. Ou na cooperativa do Clube Expresso, frente ao Hospital dos Capuchos, onde o Lourenço atendia os mais subversivos pedidos de títulos caídos em desgraça.

As cooperativas livreiras foi uma outra realidade no mundo dos livros proibidos. Éramos todos muito jovens, tínhamos 18 ou 20 anos. Foi a nossa grande escola política, diz Irene Rodrigues, que trabalhou, desde 1966, na Livrelco e está hoje na Livraria Buchholz, na Rua Duque de Palmela, em Lisboa.

Ainda uma palavra sobre os que começaram a sua luta contra a censura, através da Imprensa escrita, em suplementos literários ou juvenis e, na maior parte, são hoje figuras de mérito na cultura portuguesa. Uma velha guarda, ligada aos jornais, onde se incluem nomes como Óscar Lopes, Álvaro Salema, Augusto da Costa Dias, Mário Castrim, Nuno Teixeira Neves. A Seara Nova, com Câmara Reis, Rogério Fernandes e Augusto Abelaira, onde colaboravam, entre outros, Manuel Sertório, José Tengarrinha, Nuno Brederote Santos, Upiano do Nascimento (da Editorial Inova), Sottomaior Cardia, António Reis, José Garibaldi (da Editorial Estampa), Sérgio Ribeiro e Blasco Hugo Fernandes, (da Prelo Editora), e Jorge Reis e Joaquim Barradas de Carvalho, (ambos escrevendo do exílio), etc.

É de destacar, ainda, a presença, quer na imprensa literária, quer nas editoras, de José Saramago, Fernando Piteira Santos, Carlos Porto, Victor da Silva Tavares, Nelson de Matos, E. M. de Melo e Castro, Eduardo Prado Coelho, etc.

João Medina, Artur Portela Filho, Sttau Monteiro, Luís Francisco Rebelo, Bernardo Santareno, Fiamma Hasse Pais Brandão, por exemplo, viram também os seus trabalhos perseguidos pela censura e alguns pagaram caro a sua ousadia. A PIDE não os poupou.

Ainda entre os que fazendo escola na Imprensa haveriam de afirmar-se como escritores bem conhecidos e apreciados, recorde-se Baptista Bastos, Mário Ventura, Miguel Serrano, Daniel Filipe, Adelino Tavares da Silva. Ou José Carlos Vasconcelos e Fernando Assis Pacheco. Ou Joaquim Letria, Pedro Alvim, Afonso Praça, Cáceres Monteiro, César Príncipe, Manuel Geraldo, Josué da Silva, Ribeiro Cardoso, Nuno Gomes dos Santos, José Jorge Letria, Leonor Martinho Simões, Eugénio Alves, etc.

Mais nomes poderiam ser aqui citados num desfiar sem conta. A repressão da cultura e dos seus obreiros nas várias e distintas facetas foi uma saga feroz e indiscriminada que só parou quando os tanques do saudoso capitão Salgueiro Maia começaram a entrar vitoriosos no Terreiro do Paço de Lisboa.

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